Visitei pela primeira vez o Nepal em dezembro de 2005 com o tal grupo com quem fui à Índia. Não tinha qualquer expectativa em relação ao país, era apenas mais um que ia conhecer. Mas ainda vamos no ar e já aquela vista magnífica dos Himalaias nos cativa.
Instalámo-nos em Thamel, o centro turístico de Kathmandu, e saímos para dar uma volta a pé, ao fim da tarde. E foi logo aí. Amor à primeira vista! As cores, a arquitectura, o sorriso humilde das pessoas. E ao primeiro cheiro exótico do incenso. E ao primeiro som das sinetas dos templos. Sei lá! Gostei logo daquilo tudo. Mesmo da caótica e hilariante confusão das ruas, dos engarrafamentos de riquexós e das vacas que por ali passeiam indiferentes.
Adorei os templos da Durbar Square, a Kumari, o Shiva e a Parvati,
os pagodes de mil telhados, as delicadas esculturas, os monstros e as divindades de vários braços, os rituais sagrados e milenares,
os sadhus de Pashupatinath, os olhos da stupa em Bodanath,
a sabedoria dos mestres e o riso jovial dos monges,
o Buda e os macacos de Swayambhunath,
os templos e as ruas calmas de Bhaktapur. Tudo!
Chobar, Pharping
Nas vésperas da partida, todo o grupo se reuniu num jantar de despedida no restaurante Rum Doodle em Kathmandu, famoso entre os alpinistas do Everest. Diante de nós a bandeira portuguesa assinada pelo João Garcia. Um outro grupo festejava o fim das filmagens e o aniversário do realizador, o americano David Breashears.
O grupo partiu para ir passar o Natal a Portugal. Eu fiquei, sozinha. Já tinha adiado a passagem de avião para daí a uma semana. Recolhi informações e aconselharam-me a visitar Pokhara. Fui de autocarro para lá. As montanhas do Annapurna a espreitar-nos sobre as nuvens.
Aproveitei então para uns curtos dias de trekking. Começámos, o guia e eu, em Nayapul, a 1020m de altitude e fomos subindo e contornando montanhas até Ghandruk, a 1940m.
Não há estradas de acesso a estas paragens. Tudo aquilo de que se necessita é transportado às costas ou no dorso de animais. E o tempo esvai-se lentamente num quotidiano sem pressas.
Ghandruk
A minha noite de Natal foi passada em Sarangkot numa ceia ao ar livre aquecida pela fogueira e pela companhia de habitantes locais. Lá em baixo o lago sereno e as luzes da cidade de Pokhara e sobre nós os cumes de neves eternas sob a luz suave da lua. Levantei-me de madrugada para ver o nascer do sol do miradouro. Um espectáculo sublime! Que soube a pouco.
Annapurna e o Machhapuchhre
Nesse mesmo dia estava a despedir-me de Pokhara e dos amigos que lá deixei e a voar na Buddha Air para Kathmandu. Nas ruas um miúdo pedia trocos e convidei-o para jantar comigo. Era dia de Natal e ele chamava-se Buddha. Seria um bom augúrio?
Devia ser. Dois meses depois estava de volta a este maravilhoso reino dos Himalaias. E com mais tempo para fazer trekking.
De novo na região Annapurna lá vamos atravessando rios e subindo montanhas em contacto com a genuína cultura nepalesa. Passamos por remotas e tradicionais aldeias onde a vida ainda segue o ritmo do passado. Cruzamo-nos com crianças aprumadas a caminho da escola e burros ou cavalos que carregam mercadorias.
Nos primeiros dias choveu, e bem. Secamos as roupas nas salamandras enquanto conversamos com nepaleses, tibetanos ou outros turistas que se aventuram por este verdadeiro santuário da natureza adentro. Simples e sem luxos.
Depois vem o sol e, à medida que subimos em altitude, a neve. Estamos em março. A floresta está enfeitada por rododendros vermelhos que caem sobre o manto branco. O silêncio profundo das montanhas é interrompido pelo suave tilintar dos guizos dos burros de carga. Um regalo para os olhos! E para os ouvidos.
Ghorepani: o Dhaulagiri visto do quarto
Em Ghorepani madrugamos para subir ao Poon Hill, a 3210m, o ponto mais alto em que estivera até então. Serviu-me de preparação para o Tibete cuja viagem já estava marcada nesta altura. Mais um deslumbrante espectáculo do nascer do sol desenrola-se aos nossos olhos e vai iluminando os majestosos picos do Annapurna e Fish Tail.
Continuamos o trekking, que demorou 8 dias, calcorreando montanhas e vales sempre com as montanhas nevadas em vista. Março é uma boa altura para admirar a sua grandiosidade já que o tempo se apresenta geralmente limpo.
Nos momentos de repouso, aconchegamo-nos com um chá ou mergulhamos nas águas escaldantes das ‘hot springs’. E acabamos o trekking, revigorados.
Nas terras baixas do Terai visitei várias famílias. Vivem em casas mais que modestas mas as suas feições expressam sempre um sorriso.
E com amigos brindei ao pôr-do-sol em Chitwan.
No Nepal existem nove parques naturais e três reservas de vida selvagem, que se concentram nas áreas de montanha e nas planícies tropicais que se estendem no sul. No Terai, localizam-se cinco áreas protegidas, habitats riquíssimos que pululam de vida. É o caso do Parque Nacional de Chitwan.
De canoa, de jipe e de elefante embrenhamo-nos no parque para ver crocodilos, rinocerontes, pavões, veados, tigres e mesmo ursos.
Lumbini, Gorkha
Os autocarros locais andam normalmente apinhados e transportam todo o tipo de 'passageiros'.
Por esta altura, no Nepal, continuavam os conflitos entre o exército nacional e o exército maoista. Os autocarros eram revistados e todos os nepaleses se apeavam para passar no controlo dos vários check-points ao longo dos trajectos.
As estradas estavam semi-bloqueadas de quando em quando para impedir a fuga rápida dos maoistas e permitir que mais facilmente fossem alcançados pelo exército do rei em caso de necessidade. E lá íamos nós em marcha lenta e aos ziguezagues no autocarro.
Havia forte presença militar nas ruas de Kathmandu e as manifestações dos opositores ao governo sucediam-se. As greves eram constantes e o recolher obrigatório diário e cada vez mais longo.
Desencadearam-se uma série de acções para afastar o rei, Gyanendra Bir Bikram, da governação do país, até então a única monarquia hindu do mundo. O acordo de paz entre os principais partidos políticos e os antigos rebeldes maoistas viria a ser assinado em novembro desse ano pondo fim a dez anos de uma guerra civil que fez 13 mil mortos.
Mas nada disso me intimidou, nem a mim nem ao Florent, um francês saxofonista, com quem passeava pelas ruas desertas de Thamel à procura de um sítio 'secreto' aberto onde pudéssemos comer e tomar qualquer coisa. Protegidos pela ‘benesse’ de sermos turistas, os soldados não se metiam connosco. Para além do mais, deixei o Nepal em grande festa, nas comemorações do Ano Novo, a 14 de abril de 2063…
Decididamente enfeitiçada pelos altivos Himalaias e seduzida pela humilde dignidade deste povo, nos finais de Julho de 2006 eu estava de volta ao Nepal. E fui logo baptizada pelas chuvas fortes da monção. No entanto, na maioria das vezes, chovia e trovejava de noite. Os dias resplandeciam.
Mosteiro de Kopan
Aproveitei para conhecer todo o vale de Kathmandu, um cruzamento de povos e raças da montanha e da planície, recheado de monumentos históricos de admirável beleza arquitectónica.
Patan
Budhanilkantha, Kirtipur
Godavari
Dhulikhel, Panauti
Os campos estão pintados pelo verde luminoso dos campos de arroz.
Oficialmente, o Hindu é a religião do Nepal mas, na prática, a religião nepalesa é uma harmoniosa mistura de crenças hindus e budistas com um panteão de divindades tântricas.
Namobuddha
Meti-me nos desengonçados autocarros nacionais e fui conhecer o lado Este do país começando por Janakpur, um centro de peregrinação hindu no sul do Nepal.
Janakpur é o centro da antiga cultura Maithili, que tem língua e escrita próprias. As mulheres são conhecidas pelas suas artes tradicionais, em especial as suas pinturas que são famosas internacionalmente, as pinturas Mithila.
Em Janakpur encontra-se o único, e curto, eixo ferroviário do Nepal, o Railway Janakpur, que liga a cidade com a fronteira da Índia. Segue abarrotado por dentro e por fora, a 20km à hora.
Saí para ir visitar a aldeia de Baidehi onde todos, habitantes e animais, nos olham com enorme curiosidade. Decorria o mês de agosto e o calor no sul era ainda mais abrasador.
Baidehi
Continuamos para Este observando os condutores de búfalos e constatando que o condutor do nosso autocarro atravessa os leitos pedregosos dos rios quando a forte chuva das monções rebentou completamente com as pontes existentes.
Em autocarros e jipes visito as terras altas e mais frescas de Hile e Ilam, onde as plantações de chá se estendem a perder de vista, mas dos cumes nevados dos Himalaias nem sinal. Esta altura do ano não é boa para essas vistas.
E continuei até Karkabitta, fronteira este do Nepal com a Índia, por onde saí e entrei quando visitei o Sikkim.
Mais adiante, em agosto, meti-me numa avioneta e aterrei na pista inclinada de Lukla, uma das pistas de aterragem mais perigosas do mundo. A cidade, a 2.860m de altitude, situa-se no nordeste do Nepal e é um popular local de entrada para os visitantes do Everest.
Com um guia e um porter enveredei pela região de Solukhumbu e ingressei no Parque Nacional de Sagarmatha, para o qual, tal como na região de Annapurna, é preciso uma autorização.
Seguimos por caminhos e trilhos, pontes velhas de madeira ou mais novas, de metal.
Subimos e descemos encostas envoltos num estonteante cenário esculpido pela Natureza.
Cruzamo-nos com iaques e porters carregando pesos surreais.
No segundo dia chegamos a Namche Bazaar, localidade a 3440m de altitude, aninhada numa colina. É o principal centro comercial da região de Khumbu. Aqui ficamos uma noite, paragem importante para adaptação à altitude.
Para além do mercado, a aldeia tem muitas lojas e armazéns onde se pode encontrar quase tudo o que é necessário para trekking, mas os preços são mais elevados do que em Kathmandu pois todos os bens são transportados por via aérea e por porters, ou seja, às costas. E quanto mais alto se sobe na região de Khumbu, mais altos os preços.
Khumjung
Tengboche; Pangboche
Os habitantes da zona são na maioria Sherpas, um povo originário de Kham, província do Tibete, donde se crê terem fugido a pressões militares e políticas no século XV.
As suas vidas estão intimamente ligadas ao budismo e a sua economia, tradicionalmente baseada na agricultura, criação de animais e trocas com o Tibete, está hoje em dia muito dependente do turismo.
As pedras mani, placas lisas, rochas ou seixos inscritos com orações e mantras budistas, flanqueiam os caminhos. ‘Mani’ significa ‘jóia’ e simboliza o caminho para alcançar a iluminação. Mas eu não tenho pretensões a isso nem sou alpinista. Em Pangboche volto para trás pois o tempo não dá para tudo e o Everest teima em esconder-se nas nuvens baixas. E escalar montanhas até aos 4.000 metros para mim já chega.
Penduro ao vento as minhas bandeirinhas de oração e despeço-me, por agora, do Nepal. Namastê!