Um blogue de viagens, encontros, desencontros e reencontros na VIAGEM que é a vida. "Mais importante que o destino, é a viagem."

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Tibete

Para ir ao Tibete é necessário organizar a viagem e tratar do visto numa agência. Não são permitidos viajantes independentes ou, pelo menos, assim era quando lá fui. Reservei-a em Kathmandu, no Nepal e conhecemo-nos os quatro no jipe que nos levaria até Kodari, na fronteira: eu, uma rapariga holandesa, outra dinamarquesa e um rapaz britânico. Cada um viajava por sua conta. A partir dali viajaríamos juntos até Lhasa. Cinco dias em viagem, três dias em Lhasa.
Depois das formalidades aduaneiras no lado nepalês, atravessámos a ponte a pé. Do lado tibetano, esperavam-nos aquele que iria ser o nosso guia a partir daí e o condutor do outro jipe. No meio de uma fila interminável de camiões, subimos pela estrada estreita até Zhangmu, localidade na encosta dos Himalaias, a 2300m de altitude. Novas formalidades fronteiriças.
Quando me perguntam se já fui à China, respondo instintivamente que não. Para mim a China é um país por conhecer e o Tibete algo diferente. Mas ali estava eu, nos finais de Março de 2006. Na província chinesa do Tibete, com dinheiro chinês na mão.
Seguimos os seis no jipe contornando a montanha pelo vale do rio Bhote Koshi. À medida que subimos em altitude deixamos a floresta tropical densa e húmida do subcontinente. Enfrentamos uma subida de quase 3000 metros em menos de 50 km e a paisagem vai-se despindo. Surge a neve. A estrada fora aberta há poucos dias, após o Inverno rigoroso.
A primeira noite foi em Nyalam, a 3800m de altitude, onde tive alguns sintomas do ‘mal de montanha’: uma ligeira pressão na cabeça, uma maior dificuldade em respirar e dificuldade em adormecer. Mas penso também que sentia ansiedade por tanto ouvir falar nisso. Nos outros dias, a mais altitude, praticamente esqueci, embora continuasse a notar que, devido à menor quantidade de oxigénio no ar, inspirava mais profundamente e pequenos esforços físicos, como subir as escadarias dos mosteiros, cansavam mais.
Nyalam
No segundo dia, em pleno planalto tibetano, a arrepiante sensação de estarmos no tecto do mundo! Atravessamos Lung La, uma passagem com 5050m e seguimos para Tingri, antigo entreposto de trocas comerciais em géneros, onde almoçamos.
 
Tingri
À nossa frente ergue-se a majestosa cordilheira dos Himalaias com as montanhas mais altas do planeta forradas a neve: o Monte Everest ou Qomolangma para os tibetanos, com 8848m, Monte Lhotse com 8.501m, Makalu com 8462m, Cho Oyu com 8201m e Xixapangma com 8027m, entre outros.


A partir de Tingri há um caminho de acesso ao mosteiro Rongbuk, o mais alto do mundo, no sopé do Everest. Este mosteiro foi demolido durante a Revolução Cultural e depois reconstruído. As pequenas pilhas de pedras ao longo do percurso são oferendas dos peregrinos às divindades.



Friendship highway
Estrada fora pela Friendship highway, que liga Kathmandu a Lhasa, tibetanos com trajes típicos passam a pé, de carroça ou de tractor. Os iaques olham-nos com espanto. Passamos por vilarejos tradicionais, perdidos na paisagem agreste, com casas de adobe caiadas de branco e janelas coloridas.
Depois outra passagem alta, Lak Pa, a 5200m. Nestes pontos mais altos, centenas de bandeiras de oração coloridas espalham aos quatro ventos as orações e mantras nelas impressas. Lá fora um frio de rachar.
Após um percurso total de cerca de 230 km chegamos a Lhatse, a 4350m. Dormimos numa hospedaria tibetana, num quarto partilhado pelos quatro, tal como em Nyalam, com as instalações sanitárias mais básicas do trajecto. É melhor não descrever...
Lhatse
No terceiro dia, viajamos apenas durante a manhã. A paisagem típica continua a desenrolar-se à nossa frente: o inóspito, árido e rochoso planalto tibetano com picos escarpados em volta. A altitude média ronda os 5000 metros. Atravessamos a passagem mais alta desta rota, Gyatchu La, a 5220m e entramos em Xigatse, a segunda maior cidade da Região Autónoma do Tibete, a 3900m de altitude.
Aqui se situa o mosteiro TashiLumpo, fundado por Sua Santidade o primeiro Dalai Lama, Gendun Gyalwa Drup, em 1447. O complexo está rodeado por muros e os edifícios pintados de branco e vermelho monástico.
Xigatse
Telhados ou beirais dourados assinalam os edifícios mais importantes, assim como tridentes enfeitados com lã de iaque. Bandeiras de orações e folhos com as cores do budismo, ondulando ao vento, decoram terraços e portadas. Coloridas e adornadas portas chamam a nossa atenção.
No mosteiro segue-se a escola Gelugpa do budismo, a tradição do Chapéu Amarelo, onde se estuda a Filosofia Budista Mahayana e o Tantra. Antes da ocupação chinesa viviam aqui mais de 4000 monges. Agora, cerca de 600.
No século XVII, o mosteiro tornou-se a sede dos Panchen Lamas. O Panchen Lama, nome que significa ‘grande sábio’, é o segundo mais importante líder espiritual do Tibete a seguir ao Dalai Lama. Num dos templos está o túmulo do 4º Panchen-Lama, outros foram destruídos.
O actual Panchen Lama (11º) é motivo de controvérsia: o governo da República Popular da China afirma que é Gyancain Norbu, enquanto o Governo tibetano no exílio defende que é Gedhun Choekyi Nyima. Este, filho de um pastor tibetano, tinha apenas 6 anos quando foi escolhido pelo 14º e actual Dalai Lama, em 1995, como a reencarnação do Panchen Lama. Foi então preso pelo governo chinês e nunca mais foi visto em público.
Mosteiro TashiLumpo
No quarto dia o percurso é curto, 90 km de Xigatse a Gyantse, que fica a 3950m de altitude. No caminho, visitamos um moinho onde é feita a farinha com que se prepara a Tsampa, o alimento básico do Tibete, que consiste em farinha de cevada torrada misturada com chá de manteiga de iaque salgada.
Gyantse
Almoçámos os quatro, visitámos o mercado local e, no tempo livre, subimos à fortaleza medieval de Dzong. No séc. XV, Gyantse era capital de um pequeno reino. Tornou-se o principal centro de comércio com a India durante o governo britânico naquele país. Tal como em Xigatse, a presença chinesa é bem visível. Casas modernas e muitas lojas comerciais. Os hotéis em que nos instalamos melhoraram substancialmente.
Fortaleza - Dzong
Mosteiro Phalkor
Mais tarde, visitámos o Mosteiro Phalkor, fundado em 1418 e rodeado por muralhas. Aqui existiram vários mosteiros, hoje apenas um. Gigantes estátuas de Buda erguem-se no interior do mosteiro.
Dentro das muralhas encontra-se também a enorme e graciosa Stupa Kumbum (Cem Mil Imagens Sagradas), um edifício octogonal de seis andares que recria uma série de mandalas, os mapas simbólicos do espaço sagrado, combinando capelas interiores e terraços.
Estes edifícios em forma de cone, que representam o cosmos, são comuns nas imediações de templos e mosteiros budistas, assinalando território sagrado e encerrando relíquias funerárias de lamas importantes ou do próprio Buda. No topo, os quatro pares de olhos de Buda observam-nos.
No quinto dia madrugamos ainda mais. O percurso é o mais longo, 260 km. Passamos em Karo La, a 5010m e em Kamba La, a 4800m.
Admiramos as águas azul-turquesa do vasto e lindíssimo Lago Yamdrok e cruzamos o rio Brahmaputra, a linha de vida tibetana.
Lago Yamdrok

Rio Brahmaputra
Finalmente, chegamos a Lhasa, capital administrativa da Região Autónoma do Tibete, situada a 3650m de altitude. Fica no centro do planalto tibetano e está rodeada por montanhas de 5.500 metros. Era dia 1 de Abril e não era mentira. Estava em Lhasa, no "lugar dos deuses", cidade mítica e sagrada, onde até há pouco raros eram os estrangeiros.
Mas, se a ocupação chinesa abriu esta possibilidade e trouxe até melhor qualidade de vida, também trouxe o outro lado. E sentimos que esta tradicional capital tibetana está a ser engolida e descaracterizada por esta outra cultura. Pareceu-me quase inacreditável entrar em Lhasa e percorrer aquelas largas avenidas com semáforos de contagem decrescente. Proliferam os prédios, bons carros, centros comerciais e lojas de marcas internacionais.
Lhasa
A principal atracção de Lhasa é o emblemático Palácio Potala, Património Mundial da Humanidade da UNESCO, berço do budismo tibetano, que se eleva, arrebatador, diante de nós. Anterior residência oficial do Dalai Lama e sede do poder político, administrativo e religioso do Tibete, está agora transformado num lucrativo museu explorado pelo estado chinês.
Antigo palácio do séc. IX do primeiro soberano tibetano, Songtsen Gampo, foi reconstruído e aumentado no séc. XVII pelo 5º Dalai-Lama, Lobsang Gyatso. Foi então baptizado de Potala, nome derivado do sânscrito que significa “A montanha de Buda” e passou a ser usado como palácio de inverno pelo Dalai Lama, a partir dessa época.
Potala
O Palácio Branco, o primeiro a ser construído em 1645, serve de muralha ao Vermelho, no interior. É neste, construído posteriormente, que se encontram as principais galerias, capelas e túmulos dos anteriores Dalai Lamas. Do actual, Sua santidade o 14º Dalai Lama, chefe do governo tibetano no exílio, em Dharamsala, na India, nem uma foto se expõe. Peregrinos tibetanos circundam constantemente o palácio percorrendo a Kora, percurso sagrado, enquanto rodam os moinhos de orações à volta dos muros ou os que trazem nas suas mãos e entoam, ao mesmo tempo, o mantra OM MANI PADME HUM.
No coração da cidade, em pleno centro histórico, está a praça Barkhor onde se destaca o Templo Jokhang, considerado como o centro mais sagrado do Tibete. É conhecido como o local onde Padmasambhava magicamente derrotou o demónio da terra construindo as fundações deste templo sobre o seu coração.
Templo Jokhang
Aqui se concentram centenas de peregrinos em ininterrupta circunvolução do templo, sempre no sentido dos ponteiros do relógio, repetindo rezas e mantras ancestrais, em compenetrada devoção. Diante do templo, os peregrinos erguem os braços e encostam as mãos unidas à cabeça, ao rosto e ao peito, antes das sucessivas prostrações. Tudo isto a fim de ganhar mérito espiritual.
Barkhor
A cidade contém três caminhos concêntricos usados por peregrinos para circundar o sagrado Templo de Johkhang. O caminho mais interno, o Nangkor, está contido dentro do Templo de Jokhang, e circunda o santuário de Jowo Shakyamuni. O caminho do meio, o Barkhor, circunda o Templo de Jokhang e várias outras construções em seus arredores. O caminho de fora, o Lingkor, circunda toda a cidade tradicional de Lhasa.
Na praça e à volta do templo prolifera o comércio de artigos relacionados com o budismo: katas, manteiga de iaque, artesanato, roupa, ouro, souvenirs. Vendedoras de rua impingem bijuterias tentando sacar os Yuan aos turistas.

Visitei, por mim, o templo Jokhang na altura em que foram abertas as portas aos peregrinos que, ansiosamente, aguardam lá fora este momento.

Entrei no meio da multidão e assisti, absorta, aos cânticos dos monges (puja) que demoraram mais de uma hora. A voz grave e sincopada do mestre, acompanhada pela recitação em coro dos monges, envolve-nos em rituais milenares e intensifica experiências espirituais.
Dentro do templo, a famosa estátua de Buda Jowo é considerada a estátua mais sagrada do budismo tibetano. Foi oferecida pela princesa Wencheng, esposa do rei Songtsen Gampo. Como noutros templos budistas, figuram as estátuas de Sakyamuni, o Buda do presente, e de Maitreya, o Buda do futuro. Junto a estas ou das imagens dos Lamas e dos actuais monges, os peregrinos deixam as suas oferendas: manteiga para as lamparinas, incenso, tsampa e dinheiro.

Foi ainda no interior do templo que uma peregrina tibetana me interpelou perguntando o que eu achava de Lhasa e dizendo que os tibetanos nem sequer têm possibilidade de visitar os parentes que conseguiram fugir para países vizinhos, como o Nepal ou a India, pois é dificílimo obter um passaporte. Se por um lado lhes parece ser permitida agora a expressão da sua fé, por outro questionamo-nos até que ponto irá a política chinesa de repressão dos tibetanos e da sua cultura.
No terraço do templo, contemplo, sozinha, a vista soberba. Destaca-se, magnífico e imponente, o Palácio Potala, sobranceiro à cidade. Em redor, os picos nevados envolvem o vale.
Nos arredores de Lhasa visitámos dois mosteiros. O Mosteiro de Sera, no sopé da Colina Wu Du e o mosteiro de Drepung, ambos da escola Gelukpa, onde co-habitaram milhares de monges. Hoje, poucas centenas. Estes mosteiros, juntamente com o de Ganden, fundados no século XV, reavivaram o budismo no Tibete e são considerados os “pilares do reino”. Tal como outros locais importantes de Lhasa foram danificados ou destruídos durante a Revolução Cultural dos anos 50. Recentemente, com a relativa liberdade religiosa, muitos têm sido restaurados.
No último dia, levantei-me de madrugada e apanhei um autocarro para o aeroporto de Gonggar, 98km ao sul de Lhasa, às margens do rio Brahmaputra. Eu retornaria ao Nepal de avião enquanto os meus companheiros de jornada continuariam para outros pontos da China, como Chengdu e Beijing.
E foi assim que o vi de novo, desta feita por cima. 
O Everest. 
Altivo e magnânimo, nem as nuvens em redor o dissipam!

3 comentários:

  1. Prezada lya, poderia me passar o nome da agencia de Katmandu que realizou seu roteiro? Obrigado e parabens pelo blog!!

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    1. Obrigada, Joca. Aqui fica o nome da agência: acrosshimalaya.com

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  2. O Tibete é incrível. Eu tive a oportunidade de estar lá no início de 2016 e foi um espetáculo. E dá para visitar sem pagar pela permissão especial do governo Chinês e sai muito mais barato. Tem uma parte do Tibete que não tem controle. Tem tudo explicado nessa página: http://foradazonadeconforto.com/como-visitar-o-tibete-sem-a-permissao-do-governo-chines/

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